terça-feira, dezembro 5

E finalmente, a polémica - o aborto

Este tema mexe tanto comigo... nem sei por onde começar. Em primeiro lugar acho que ninguém é a favor do aborto. A questão não pode passar por se ser a favor ou contra. Nenhuma mulher (e todas as mulheres o sabem) toma esta decisão de ânimo leve. E por isso acho um disparate o argumento de que o aborto pode tornar-se um método de contracepção. Nunca o será.

Eu acho que não era capaz de abortar. E digo isto porque nunca o fiz. Mas isto sou eu. O meu primeiro impulso é achar que não seria capaz de o fazer, que não quereria fazê-lo, mas sei perfeitamente que sim, que o faria, se me visse numa situação sem alternativa.

Mas esta questão não pode ser discutida partindo destes pontos de vista pessoais e apaixonados. Temos de ser capazes de nos descentrar do nosso umbiguismo. O que me motiva a mim, na minha situação actual e real, não é o mesmo que motiva o vizinho do lado. Compreendo e sou completamente solidária com as mulheres que abortam. Acho que a lei do nosso país é um exemplo do seu monumental atraso em tantas vertentes. Acho uma vergonha ainda serem julgadas no tribunal mulheres que abortaram.

A questão do aborto para mim é essencial, porque mexe com a nossa qualidade humana, com a essência da vida. E a vida, contrariamente ao que muitos pensam, não começa com um aglomerado de células. A vida humana é muito mais do que isso, muito mais do que um corpo a funcionar. Viver não é o mesmo que sobreviver. Há muito tempo já que a nossa espécie deixou de estar apenas ao serviço da sobrevivência pura e dura. O que nos motiva, o que nos faz sentir estar vivos, o que nos anima e nos dá vida é muito mais do que a simples produção do conjunto das nossas células vivas.

E, acerca disto, relembro novamente as palavras de Coimbra de Matos, que deixei mais abaixo:

"A vida mental do bebé é despertada e animada pelo desejo entusiástico, a paixão dos pais. Se não existir este investimento parental, a mente do bebé não se desenvolve - fica reduzida a uma protomente. O próprio investimento de vida esmorece; é uma sobrevivência apática e abúlica.

Não tendo recebido amor, o indivíduo não vive a experiência fundamental de ser amado. Experiência fundamental e fundadora; sem ela, não há o movimento de expansão a que chamamos mente - a criação contínua. Deveras, ter mente é criar."

(António Coimbra de Matos, Depressividade e Depressão Falhada, publicado em Mais Amor Menos Doença, Climepsi Editores, 2003)

São já sobejamente conhecidas as consequências nefastas para o feto de certos agentes externos, denominados teratogénicos, e que podem comprometer o seu desenvolvimento, tanto no sentido da morte como no da diminuição da qualidade de vida, associada a determinadas deficiências. Tanto, que muitos dos mais arreigados defensores "Pró-Vida" aceitam que o aborto seja praticado nas primeiras semanas, se for comprovado que o feto sofre de alguma mal-formação congénita. Mas há muitos poucos estudos que demonstrem as terríveis consequências para a futura saúde mental do bebé do facto de se nascer sem se ser desejado. O que, quanto a mim, é uma pedra fundamental da questão.

Vivemos num mundo ainda muito ligado ao materialismo, ao que é palpável, ao que se vê - o que não se vê é muitas vezes relegado para segundo plano ou mesmo ignorado. Ter trissomia 21 ou sofrer de outra qualquer mal-formação cromossómica é uma razão legalmente aceite para um aborto no nosso país, mas sofrer de falta de amor e desejo dos pais não é. Tavez porque a esfera do sofrimento psíquico não seja visível a olho nú, e as sequelas da alma ainda não sejam encaradas pela comunidade, científica e não científica, com a mesma seriedade que as do corpo. Sabemos que a comunidade científica ligada ao tratamento e acompanhamento destes casos - os psi - há muito tempo que lidam com esta realidade, há muito tempo que a estudam e que lhe reivindicaram um estatuto cientificamente válido, mas a verdade é que essa mesma fatia da comunidade científica ainda não tem força nem poder social e interventivo para, num debate deste tipo, como o é o do aborto, conseguir que a perspectiva unificadora da mente e do corpo seja de facto reconhecida e influencie decisivamente a conceptualização ideológica que rege e determina o poder e a orientação política da sociedade.

Por outras palavras, ainda vivemos na idade média conceptual da dicotomia corpo-mente, em que o primeiro é reconhecidamente o reservatório de todo o sofrimento e mal estar associado à doença e à disfunção. As mal-formações ligadas ao corpo, ao soma, são socialmente reconhecidas como razões válidas para que uma criança não nasça, devido ao sofrimento futuro e à diminuição da qualidade de vida que comportam. Já as mal-formações causadas por estados emocionais e factores afectivos são completamente ignoradas. Não se desejar um filho não é um argumento reconhecido para abortar, é antes encarado como um sinal inequívoco de prevaricação materna, num juízo de valor completamente moralista, como se, pelo facto de se ter relações sexuais, fosse automaticamente obrigatório estar preparada para a maternidade.

Quando a maternidade for uma opção tomada em consciência, talvez tenhamos um mundo melhor. Quando o amor e o respeito pela vida humana forem valores mais altos, talvez o mundo realmente avance. E agora estou a ver uns sorrisinhos irónicos na cara dos que dizem defender a vida opondo-se ao aborto... Sim, é a vida humana que eu defendo! Não, não acho que um conjunto de células se possa chamar de vida humana. E que vida vamos oferecer a esse conjunto de células quando se tornar numa pessoa? É claro que não podemos prever o futuro, mas o facto de não se ser desejado é um factor de risco demasiado relevante. Que, quando conjugado com outros, como a falta de disponibilidade económica, ausência de projectos para o futuro, imaturidade emocional dos pais, isto para dar apenas alguns exemplos, pode ter um resultado explosivo.

E depois acho que os Pró-Vida andam um bocado confundidos das ideias. Porque, ou bem que defendem a vida, e então deveriam defendê-la sempre, ou bem que a não defendem. A vida é um valor demasiado precioso para só se defender às vezes. Será que o filho de uma violação tem menos direito à vida do que outro? Ou um bebé com deficiência cromossómica ou com qualquer tipo de mal-formação? Se é a vida que defendem, e entendendo que a vida começa na concepção, então tenham a coragem de defendê-la em todas as circunstâncias. Sejam coerentes com as vossas ideias.

Mas ainda que eu me identificasse com estes argumentos, o que seria muito difícil, mas tentando fazer esse exercício mental, não entendo como é que se pode ser contra a despenalização. Porque, mesmo que não concordasse com o aborto e o considerasse um acto contra a vida, acho que não seria capaz de fechar os olhos à realidade de milhares de abortos clandestinos, praticados em péssimas condições, que muitas vezes têm como infeliz desfecho a morte de tantas mulheres. O que me confrange mais nas pessoas que são contra a despenalização é a sua hipocrisia e a forma como conseguem ignorar esta realidade. Porque o aborto é uma realidade que mata milhares de mulheres. Mesmo que não concordemos com ele, não o conseguimos impedir. Penalizá-lo é apenas condenar as mulheres a praticá-lo em condições não humanas. Como é que se pode defender a vida de um embrião e fechar os olhos a tantas mortes de vidas de milhares de mulheres?

14 comentários:

papu disse...

Faltou dizer que não concordo que uma questão deste tipo seja decidida numa auscultação à população. Uma questão tão importante é para ser discutida e decidida na Assembleia da República, e não num referendo. Aliás, esta discussão já foi feita na Assembleia há uns anos atrás e a lei foi aprovada por maioria, sendo depois revogada por um referendo cujo resultado não deveria ter carácter vinculativo, devido à grande percentagem de abstenção. Como é que coisas destas podem acontecer no nosso país é que ainda estou para saber.

Anónimo disse...

Apoiado Papuzinha.

Não tenho palavras mais acertadas para dizer o mesmo, as tuas são as necessárias e as acertadas. Muito bem.

Só uma adenda, infelizmente já "perdi" 2 gravidezes, queria muito estes bebés mas não foi possível.
Na 1.ª vez fui muito mal tratada pois a médica que primeiro me assistiu julgou que se tratava de um aborto provocado, eu que ando em tratamentos para um filho há mais de 10 anos. Sei que uma mulher que recorre ao aborto não o faz de ânimo leve, não é a mesma coisa que tomar um comprimido como muita gente julga.

A minha posição em relação ao referendo é a mesma que a tua.

beijinhos
sonia q.

Alex disse...

Vou expressar a minha opinião através de imagens ... pode ser?

Trago-as durante a semana. Não as tenho aqui.

Bjs

papu disse...

Ficamos à espera dessas imagens ;)

Alex disse...

Tá bem ...
Demoro um bocadinho a juntar ....

mas temos tempo.

Alex disse...

Voltamos em Janeiro, combinado?

Jolie disse...

Não te conhecia e cheguei aqui através de um link.

Mas para mim este é um dos melhores textos sobre o assunto.

E para mim, isto também não é matéria para um referendo. Já devia estar aprovado desde o último...

ni disse...

vou linkar, está bem? é mmo um excelente texto, mt obg!!!

bjs e abraços

http://www.ignatz.alojamentos7.com/todasascores/

Unknown disse...

Pois eu vou pôr a nota contraditória... sou a favor da vida e não concebo o aborto sem uma forte justificação, algo que a nova lei ignora. Acho que se há gente confusa são as que são a favor quando põem uma data para liberalizar uma prática de destruição de vida. As 10 semanas?! e se tiver 11, passa? e 12 será aceitável? e nas 20, as razões não são as mesmas, as justificações mantêm-se ou será que a pobreza e a falta de amor deixou de existir? talvez nos 9 meses, mas então... o que mudou? as causas não são iguais? Ah, mas já saiu da barriga da mãe, já adquiriu estatuto! Se há coisa clara para mim é que este é um tema sem ganhadores, apenas culpados, culpados sociais! a igreja! que julga as mulheres grávidas sem companheiro, o Estado! que não apoia economicamente as mulheres grávidas, os Partidos! que apenas se lembram das mulheres na situação difícil quando é para resolver a situação de uma forma fácil, mas que nada fazem para lhes criar condições, e a Sociedade! que na sua hipocrisia se preocupa muito com a forma e o que os outro dizem e nada com o conteúdo e o sofrimento de cada um. Se a lei se aprova e vai a tribunal um caso de aborto clandestino de uma gravidez com 20 semanas (para não dizer de 23 ou 13) o que vão dizer os iluminados da nossa nação?!

papu disse...

Muito bem vindos, Sandra, Ni e Carlos.

Sandra, já te tinha visto por aqui ;) lá mais em baixo, no início do blogue... Muito obrigada pelas tuas palavras.

Ni, obrigada pelo link, e pelas palavras também lá no teu cantinho.

Carlos, eu não concordo com as 10 semanas. É claro que tem de haver um limite, e isso é uma questão difícil, aliás como já tivémos oportunidade de discutir também aqui, penso que no post da opinião da Ana... mas acho as 10 semanas um limite um pouco precoce. Se me perguntarem qual deve então ser o limite, também não tenho a certeza. O que penso é que deve ser dado algum tempo para que a decisão possa ser formulada com coerência. Mas não me parece que um aborto feito às 11 semanas deva ser penalizado.

Como já tive oportunidade de dizer, esta é uma questão realmente difícil. O que eu acho é que se a mulher, ou o casal, quiserem abortar, e se o puderem fazer dentro da lei, não vão estar á espera até às 20 ou às 22 semanas! Isso não faz sentido! Por outro lado, fazer um aborto não é uma decisão tomada de ânimo leve, exige algum tempo de reflexão.

A questão que coloca, da destruição da vida, é a mesma que se deveria colocar na lei actual. de facto, a lei actual liberaliza uma data para a destruição da vida, desde que essa vida seja portadora de uma deficiência ou de uma malformação que possam por em risco ou interferir com a qualidade de vida da fitura criança e adulto. O que a liberalização, ou antes, a despenalização do aborto pretende é a mesmíssima coisa, apenas alarga este conceito de deficiência ou malformação que possa interferir com a qualidade de vida futura. Porque é que no caso do embrião ser portador de deficiência a questão da vida já não é levada em conta? Acaso um embrião com deficiência não é uma vida? Ou é uma vida com menos direito á vida?

Não ser amado e não ser desejado pode ser um handicap futuro muito mais grave do que ter uma deficiência congénita. Este fim de semana tenho estado numa acção de formação com o Dr Michel Odent. Entre outras coisas, temos abordado os inúmeros trabalhos de investigação feitos no campo da Primal Health Research, e que são sistematicamente ignorados pela comunidade médica r científica em geral. Muitos destes estudos têm procurado obter correlações entre a vida intra-uterina e posteriores percursos de vida. Um dos grupos de estudos feitos tem precisamente a ver com um grupo de mulheres que fez pelo menos dois pedidos de aborto durante a gravidez, os quais foram negados. Estas crianças foram alvo de um estudo de follow-up dirante 32 anos. O estudo chegou à conclusão que estas crianças, comparadas com um grupo de controlo, tinham n vezes mais probabilidade de desenvolverem perturbações da personalidade (personalidades anto-sociais, psicopatia, etc).

Estes estudos existem e são, como eu disse, ignorados de uma maneira geral. É urgente que deixem de o ser e que a comunidade científica se abeire deste problema. É urgente que esta área, e nomeadamente estas questões do início da vida e das circunstãncias que rodeiam a gravidez seja alvo de investigação apurada, para que o que muita gente já sabe através muitas vezes da própria intuição e empatia seja transformada em verdade científica. Esta questão não tem tido a atenção que merece.

Tristechado disse...

É dificil dizer mais sobre o assunto... acho que muito já foi dito, mas pouco a nada foi feito...Esse é o problema de sempre...

Avozinha disse...

Mesmo que as crianças não planeadas sofram efeitos disso, sempre é bem melhor estarem vivas! A humanidade tem sido constituída de crianças não planeadas, como podes ler no meu blog. Eu voto NÃO, em quaisquer coircunstâncias!

papu disse...

Ó avó, ninguém faz um aborto por não ter planeado ter uma criança, mas sim por não querer tê-la! por não a desejar!

É claro que, mais tarde, a criança pode tornar-se desejada, mas também pode acontecer o contrário!

Bem vinda à conversa.

Anónimo disse...

Voto sim porque acho que uma criança quando nasce deve ser desejada... não deve nascer porque alguém acha que é errado abortar. Em democracia o direito è escolha é fundamental...