quinta-feira, dezembro 7

A opinião da Ana

Partilhando inteiramente a tua opinião, Papu, esta é a minha por outras palavras.
O tema aborto é demasiado complexo para poder ser decidido num sim ou num não linear. Pessoalmente não sei definir-me como estando contra ou a favor porque existem demasiados factores, demasiadas variáveis em jogo. Não quero, nem posso hastear uma bandeira com a minha pinião rígida e imutável porque, como em quase tudo o resto na vida, cada caso é um caso.
Não quero com isto dizer que cada um sabe de si porque me parece que aqui há e tem de haver uma responsabilidade que vá um pouco mais além da individual, mas as generalizações sempre me fizeram imensa confusão. Portanto, dizer “não ao aborto” ou “sim ao aborto” seria reduzir um assunto complexo a uma questão de cruzinhas.
O cerne da questão passa pela defesa da vida humana. É neste ponto que eu concordo inteiramente. A vida humana defende-se com dignidade, sem sofrimento para lá da medida do aceitável. Este sofrimento pode ser físico ou psicológico sem que um desvalorize o outro e este é outro ponto fulcral. Juntem-se os dois e teremos algo como: defender a vida humana com a dignidade física e psicológica com que ela merece ser defendida. Um monte de células ainda não é vida humana, nascer com uma deficiência congénita atroz que nos atira para o mundo não é vida humana, nascer sem se ser desejado, sem perspectivas de se ser amado, querido e aconchegado num colo não é, de todo, vida humana.
Todos nós por aqui sabemos a importância que tem o calor do corpo da mãe nos primeiros tempos de vida do bebé, todos nós aqui sabemos o quanto é estruturador e fundamental – absolutamente fundamental – sentirmo-nos amadas e queridos. Eu tenho 24 anos e preciso de me sentir amada e querida, a minha avó vai fazer 80 e basta que eu lhe telefone ao fim de uma semana em que não a pude ver para ela ficar feliz! Podemos estar doentes e fragilizados, num hospital, num lar, onde for, se tivermos carinho e amor as coisas melhoram.
O sentimento de pertença a alguém e a sensação de se ser desejado são terrivelmente vitais no início da vida do bebé. Sou, portanto, a favor do aborto nos casos em que nitidamente não existe desejo nem vontade por parte dos pais de terem a criança, nos casos em que não é possível, pelos mais variados motivos, amar-se um bebé, um filho.
Há momentos em que penso que a profissão que escolhi é ainda completamente ingrata. É nestas alturas, em que se debatem temas controversos, mas onde parece que ninguém vê o que é evidente e tão, mas tão simples. Os psicólogos trabalham no sentido de ajudar a curar males que não se tocam, não se palpam mas que destroem a vida de uma forma tão dolorosa quanto um cancro. Não amar um filho é diagnosticar-lhe um cancro para a vida. Não estou a julgar quem não ama, estou a julgar quem não vê que isso é tão grave quando uma malformação. Incluem-se na legalização os casos de violação e no fundo, a questão que ninguém vê, está lá escarrapachada. Nos casos de violação não houve amor no momento da concepção. Nos casos em que há abortos porque as mães não desejam os filhos, não há desculpas mas sim julgamentos em tribunal. E onde se calhar até fazia sentido uma generalização por parte de quem governa e decide há uma barreira.
Depois há a questão prática de que mesmo ilegais, os abortos são feitos. Aqui no Porto toda a gente sabe onde e quando e como e então entramos pelo caminho da estupidez pegada. E damos oportunidade às pessoas com menos acesso à informação e com menos meios económicos para fazerem a si próprias as maiores barbaridades. Sou a favor do aborto, sim, quando ele for suportado por meios clínicos essenciais como sejam o apoio e o exame psicológico prévio, por exemplo. Às vezes basta ouvirmos a palavra de outra pessoa para que os problemas fiquem mais claros na nossa cabeça. Sou contra o aborto quando ele é feito às três pancadas, quando ele é praticado com a mesma leveza de quem tira a farpa de um dedo.
Sem julgamentos, barreiras ou generalizações inadequadas, sou a favor do aborto quando ele é respeitador da tal vida humana. Da do bebé que há-de vir e da da mãe. Da do pai, também, por que não. Se ele tiver uma palavra a dizer! Mais do que o acto em si, gostaria de ver, um dia, o suporte adequado a quem o faz, a quem precisa de o fazer a quem tem, no fundo e talvez de uma forma um pouco retorcida, a responsabilidade de decidir entre trazer ao mundo um ser humano cuja vida vai ser apenas uma sobrevivência ou desintegrar um conjunto de células eventualmente já estruturadas que apenas existem e estão em processo de desenvolvimento na sua origem.
Cabe a cada uma de nós, a cada um de nós decidir, acima de tudo, se ama o que carrega, se o cordão umbilical é mais do que um meio de transporte ou um elo físico de ligação, cabe a quem compete pensar no amor como fonte da vida sem romantismos, cabe a quem cuida, médicos, psicólogos, enfermeiros, abrirem portas à ideia de que a mente é indissociável do corpo e sem os dois não há vida, há sobrevida, há uma tentativa desesperada de se manter à superfície sem ser capaz de respirar.
Haverá, com toda a certeza, muito mais a explorar sobre este assunto, muito mais a dizer, muitos pontos que não foquei aqui porque esta discussão é tão interminável quando a especificidade de cada um de nós. É apenas um resumo da minha opinião, escrito mais como um desabafo do que com a intenção de ser um texto coerente.
enviado por mail
Obrigada!

4 comentários:

Anónimo disse...

"nascer sem se ser desejado, sem perspectivas de se ser amado, querido e aconchegado num colo não é vida humana"

Por esta ordem de ideias, o aborto, um dia, não será
legalizado até mais tarde?

papu disse...

Anónimo, muito bem vindo ao debate. Até mais tarde? O quê? 11 semanas? 12? 13? 20? é claro que tem de haver um limite. Penso que é difícil de definir, sim, talvez uma das questões mais delicadas de toda esta decisão. Mas se o aborto for despenalizado e praticado em instituições apropriadas, não haverá motivo para as pessoas esperarem até mais tarde para o fazer.

Andei a ler o blog do sapo sobre a matéria e, sinceramente, não sei se ria se chore. As pessoas são completamente centradas no seu umbigo e nos seus próprios sentimentos em relação a esta questão. E completamente moralistas, de um moralismo atroz. Estou a falar tanto de defensores do sim como do não. Esta discussão não se pode centrar nos sentimentalismos nem na experiência de cada um. É, antes de tudo, uma questão de saúde pública.

Estou farta de ver os defensores do não a chamarem assassinos aos defensores do sim! perguntam porque não defendem então a despenalização do homicídio! Como é que é possível um raciocínio destes em pessoas adultas? Outro argumento é o de que não devemos defender para os outros aquilo que não queremos que nos façam a nós (obviamente que ninguém deseja que a sua mãezinha tivesse abortado). Se eu ouvisse este argumento na boca de uma criança de 10 anos, a quem fosse sucintamente explicado o assunto, não me admiraria. Mas em adultos? ó minha gente!

Não tenhamos medo então das palavras. fazer um aborto é matar uma vida, sim. matar uma vida em formação, mas matar. Curioso que quem grita isto ao quatro ventos não se insurja no caso de a morte - o assassínio - ser cometido contra uma vida com malformações. neste caso até argumentam que a natureza é sábia, e que até os animais abandonam as crias com deficiências, que sabem que não sobreviverão. Mas a morte de uma vida perfeita, essa sim, é um pecado.

Eu também acho que abortar é matar uma vida, por acaso. Para o caso, um esboço de vida, mas biologicamente falando, é verdade que o bebé já está formado, sim, se calhar até já tem sensações, há cada vez mais estudos que apontam nessas descobertas. Se eu pudesse mudar alguma coisa neste mundo, se fosse Deus ou coisa parecida, acho que faria com que ninguém precisasse de abortar. Assim como acabaria com as guerras e a fome e outras atrocidades.

Só que estes delírios ficam-me muito bem mas não me levam a lado nenhum. Sei que as guerras continuam, a fome, a miséria, e o aborto, também. E quem sou eu para julgar as mulheres que abortam? Por ser uma privilegiada que nunca teria de recorrer a essa opção, vou então julgar quem não é? O que sei eu da vida dessas pessoas? Sei o suficiente para saber que são uma infinidade de factores incontroláveis que levam a um aborto. Para mim são todos válidos. Não, não ponho à frente da vida de uma mulher a vida que ela traz no ventre. Cada mulher é que sabe da própria disponibilidade para ser mãe. O que as pessoas não percebem é que essa decisão, a de abortar, é a mesma que os nossos parentes animais tomam quando abandonam a tal cria com deficiências - porque sabem que ela não sobreviverá e que vai sofrer em vão. Se calhar até sobreviveria. Mas o instinto animal diz-lhes que vai ser muito difícil e penoso e que é melhor que morram logo, do que prolongar o sofrimento. É esse o sentimento de uma mulher que aborta. Que não tem disponibilidade, seja ela qual for (económica, emocional) para aquele filho. E que é melhor que ele não nasça, pois de outra forma o sofrimento vai ser muito pior.

Se não concordamos com o aborto, vamos lutar por mais condições de acesso à cultura, ao planeamento familiar. vamos lutar pela diminuição das situações de miséria que muita gente vive. vamos lutar contra todas as práticas discriminatórias no contexto laboral que existem, mesmo para além da lei. vamos lutar por melhores condiçoes de exercício da maternidade e de apoios do estado, a começar pelo aumento da licença de maternidade para 1 ano. Vamos lutar para que no nosso país os salários sejam equiparados à média europeia. Vamos lutar por tudo isso. Não vejo ninguém a barafustar contra isso. Mas levantar a mão contra as mulheres que abortam, para isso já há voz!

É a mesma coisa com a questão da toxicodependência. sabemos que as pessoas se drogam, mas é melhor fechar os olhos e deixá-las andarem a fazê-los nas esquinas, com seringas arranjadas sabe-se lá onde, sujeitas a contair SIDA e outras doenças, sujeitas a morrerem de overdose devido às misturas impuras de que muitas vezes as drogas são alvo. Dar-lhes condições de consumo dignas e, ao mesmo tempo, a possibilidade de tratamento e recuperação, isso não. Nem pensar. Que horror! O problema continua a existir, e alguém continua a encher os bolsos com o lucro do tráfico, mas legalizar, isso não!

desculpem a salada, mas olhem, estou farta! É claro que é importante discutir estas questões, mas devíamos fazê-lo mais civilizadamente, na minha opinião.

Anónimo disse...

Obrigada pelas boas-vindas.
Gostei de ler.
Continuo em reflexão e fico a remoer cá dentro os seus argumentos, coisa que não costuma acontecer, falemos de um SIM ou de NÃO, porque normalmente são absurdos demais para poderem ser remoídos.

Vou passando por cá.

papu disse...

:)

Saber que podemos contribuir de alguma forma para a reflexão de alguém é muito bom. Por si já faz sentir que vale a pena este espaço. Obrigado.

Acho que é para isso que se deve discutir, para se reflactir, para se auscultarem opiniões contrárias às nossas, mas com seriedade, sem pedras na mão e sem aquela necessidade de rebater automaticamente tudo o que não encaixa no nosso campo ideológico. As pessoas normalmente não sabem discutir, não o fazem correctamente. É isso que sinto que se passa com esta discussão. É que assim ela torna-se improdutiva. As pessoas não vão mudar de opinião, e nem sequer ouvem os outros, apenas se ouvem a si mesmas, e mais não fazem do que gritar os seus argumentos aos quatro ventos, porque niguém os ouve.

Assim não se chega a lado nenhum.

Afinal esta questão passa toda por aí: por saber ouvir o outro, saber respeitá-lo e saber respeitar as suas opções e opiniões. Put tourself in another shoes, ou seja, colocarmo-nos no lugar do outro. É isso que é tão difícil. O mesmo para as mulheres que optam por abortar. Difícil para quem está de fora é entrar-lhes na pele, entender realmente quais os seus motivos, quais as suas aspirações, as suas razões, aquilo que a vida as deixa, as obriga, ou lhes permite, fazer.

lembro-me de uma exposição que visitei um dia na Zé dos Bois no bairro Alto sobre o aborto. Eram vários quartos, com soalho de madeira, e em cada canto havia um colchão com lençóis e cobertores por cima, como uma cama. Depois em cada cama havia vários materiais, recipientes com água, bocados de sabão, toalhas, objectos pontiagudos e de morfologia estranha. Ao lado de cada cama estava uma folha com algumas palavras escritas. Aproximavamo-nos para ler e eram meia dúzia de instruções simples: "... depois de lavar cuidadosamente... introduza o objecto na vagina... recomendamos que..." etc etc. Eram "receitas de abortos!", habitualmente praticados em casa. No fim lia-se em letras a vermelho: "de seguida chame o 112" recomendavam ainda que ninguém nunca experimentasse aquelas instruções, que estavam ali apenas para mostrar às pessoas o modo como tantas mulheres abortam diariamente... na intimidade das suas casas, com métodos artesanais e perigosíssimos, a maioria acabando por morrer devido a eles... era impressionante. É esta realidade que temos de travar a todo o custo. A dos abortos clandestinos, nos vãos de escadas, nas casas, onde for.