sábado, dezembro 23

quinta-feira, dezembro 7

A opinião da Ana

Partilhando inteiramente a tua opinião, Papu, esta é a minha por outras palavras.
O tema aborto é demasiado complexo para poder ser decidido num sim ou num não linear. Pessoalmente não sei definir-me como estando contra ou a favor porque existem demasiados factores, demasiadas variáveis em jogo. Não quero, nem posso hastear uma bandeira com a minha pinião rígida e imutável porque, como em quase tudo o resto na vida, cada caso é um caso.
Não quero com isto dizer que cada um sabe de si porque me parece que aqui há e tem de haver uma responsabilidade que vá um pouco mais além da individual, mas as generalizações sempre me fizeram imensa confusão. Portanto, dizer “não ao aborto” ou “sim ao aborto” seria reduzir um assunto complexo a uma questão de cruzinhas.
O cerne da questão passa pela defesa da vida humana. É neste ponto que eu concordo inteiramente. A vida humana defende-se com dignidade, sem sofrimento para lá da medida do aceitável. Este sofrimento pode ser físico ou psicológico sem que um desvalorize o outro e este é outro ponto fulcral. Juntem-se os dois e teremos algo como: defender a vida humana com a dignidade física e psicológica com que ela merece ser defendida. Um monte de células ainda não é vida humana, nascer com uma deficiência congénita atroz que nos atira para o mundo não é vida humana, nascer sem se ser desejado, sem perspectivas de se ser amado, querido e aconchegado num colo não é, de todo, vida humana.
Todos nós por aqui sabemos a importância que tem o calor do corpo da mãe nos primeiros tempos de vida do bebé, todos nós aqui sabemos o quanto é estruturador e fundamental – absolutamente fundamental – sentirmo-nos amadas e queridos. Eu tenho 24 anos e preciso de me sentir amada e querida, a minha avó vai fazer 80 e basta que eu lhe telefone ao fim de uma semana em que não a pude ver para ela ficar feliz! Podemos estar doentes e fragilizados, num hospital, num lar, onde for, se tivermos carinho e amor as coisas melhoram.
O sentimento de pertença a alguém e a sensação de se ser desejado são terrivelmente vitais no início da vida do bebé. Sou, portanto, a favor do aborto nos casos em que nitidamente não existe desejo nem vontade por parte dos pais de terem a criança, nos casos em que não é possível, pelos mais variados motivos, amar-se um bebé, um filho.
Há momentos em que penso que a profissão que escolhi é ainda completamente ingrata. É nestas alturas, em que se debatem temas controversos, mas onde parece que ninguém vê o que é evidente e tão, mas tão simples. Os psicólogos trabalham no sentido de ajudar a curar males que não se tocam, não se palpam mas que destroem a vida de uma forma tão dolorosa quanto um cancro. Não amar um filho é diagnosticar-lhe um cancro para a vida. Não estou a julgar quem não ama, estou a julgar quem não vê que isso é tão grave quando uma malformação. Incluem-se na legalização os casos de violação e no fundo, a questão que ninguém vê, está lá escarrapachada. Nos casos de violação não houve amor no momento da concepção. Nos casos em que há abortos porque as mães não desejam os filhos, não há desculpas mas sim julgamentos em tribunal. E onde se calhar até fazia sentido uma generalização por parte de quem governa e decide há uma barreira.
Depois há a questão prática de que mesmo ilegais, os abortos são feitos. Aqui no Porto toda a gente sabe onde e quando e como e então entramos pelo caminho da estupidez pegada. E damos oportunidade às pessoas com menos acesso à informação e com menos meios económicos para fazerem a si próprias as maiores barbaridades. Sou a favor do aborto, sim, quando ele for suportado por meios clínicos essenciais como sejam o apoio e o exame psicológico prévio, por exemplo. Às vezes basta ouvirmos a palavra de outra pessoa para que os problemas fiquem mais claros na nossa cabeça. Sou contra o aborto quando ele é feito às três pancadas, quando ele é praticado com a mesma leveza de quem tira a farpa de um dedo.
Sem julgamentos, barreiras ou generalizações inadequadas, sou a favor do aborto quando ele é respeitador da tal vida humana. Da do bebé que há-de vir e da da mãe. Da do pai, também, por que não. Se ele tiver uma palavra a dizer! Mais do que o acto em si, gostaria de ver, um dia, o suporte adequado a quem o faz, a quem precisa de o fazer a quem tem, no fundo e talvez de uma forma um pouco retorcida, a responsabilidade de decidir entre trazer ao mundo um ser humano cuja vida vai ser apenas uma sobrevivência ou desintegrar um conjunto de células eventualmente já estruturadas que apenas existem e estão em processo de desenvolvimento na sua origem.
Cabe a cada uma de nós, a cada um de nós decidir, acima de tudo, se ama o que carrega, se o cordão umbilical é mais do que um meio de transporte ou um elo físico de ligação, cabe a quem compete pensar no amor como fonte da vida sem romantismos, cabe a quem cuida, médicos, psicólogos, enfermeiros, abrirem portas à ideia de que a mente é indissociável do corpo e sem os dois não há vida, há sobrevida, há uma tentativa desesperada de se manter à superfície sem ser capaz de respirar.
Haverá, com toda a certeza, muito mais a explorar sobre este assunto, muito mais a dizer, muitos pontos que não foquei aqui porque esta discussão é tão interminável quando a especificidade de cada um de nós. É apenas um resumo da minha opinião, escrito mais como um desabafo do que com a intenção de ser um texto coerente.
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terça-feira, dezembro 5

E finalmente, a polémica - o aborto

Este tema mexe tanto comigo... nem sei por onde começar. Em primeiro lugar acho que ninguém é a favor do aborto. A questão não pode passar por se ser a favor ou contra. Nenhuma mulher (e todas as mulheres o sabem) toma esta decisão de ânimo leve. E por isso acho um disparate o argumento de que o aborto pode tornar-se um método de contracepção. Nunca o será.

Eu acho que não era capaz de abortar. E digo isto porque nunca o fiz. Mas isto sou eu. O meu primeiro impulso é achar que não seria capaz de o fazer, que não quereria fazê-lo, mas sei perfeitamente que sim, que o faria, se me visse numa situação sem alternativa.

Mas esta questão não pode ser discutida partindo destes pontos de vista pessoais e apaixonados. Temos de ser capazes de nos descentrar do nosso umbiguismo. O que me motiva a mim, na minha situação actual e real, não é o mesmo que motiva o vizinho do lado. Compreendo e sou completamente solidária com as mulheres que abortam. Acho que a lei do nosso país é um exemplo do seu monumental atraso em tantas vertentes. Acho uma vergonha ainda serem julgadas no tribunal mulheres que abortaram.

A questão do aborto para mim é essencial, porque mexe com a nossa qualidade humana, com a essência da vida. E a vida, contrariamente ao que muitos pensam, não começa com um aglomerado de células. A vida humana é muito mais do que isso, muito mais do que um corpo a funcionar. Viver não é o mesmo que sobreviver. Há muito tempo já que a nossa espécie deixou de estar apenas ao serviço da sobrevivência pura e dura. O que nos motiva, o que nos faz sentir estar vivos, o que nos anima e nos dá vida é muito mais do que a simples produção do conjunto das nossas células vivas.

E, acerca disto, relembro novamente as palavras de Coimbra de Matos, que deixei mais abaixo:

"A vida mental do bebé é despertada e animada pelo desejo entusiástico, a paixão dos pais. Se não existir este investimento parental, a mente do bebé não se desenvolve - fica reduzida a uma protomente. O próprio investimento de vida esmorece; é uma sobrevivência apática e abúlica.

Não tendo recebido amor, o indivíduo não vive a experiência fundamental de ser amado. Experiência fundamental e fundadora; sem ela, não há o movimento de expansão a que chamamos mente - a criação contínua. Deveras, ter mente é criar."

(António Coimbra de Matos, Depressividade e Depressão Falhada, publicado em Mais Amor Menos Doença, Climepsi Editores, 2003)

São já sobejamente conhecidas as consequências nefastas para o feto de certos agentes externos, denominados teratogénicos, e que podem comprometer o seu desenvolvimento, tanto no sentido da morte como no da diminuição da qualidade de vida, associada a determinadas deficiências. Tanto, que muitos dos mais arreigados defensores "Pró-Vida" aceitam que o aborto seja praticado nas primeiras semanas, se for comprovado que o feto sofre de alguma mal-formação congénita. Mas há muitos poucos estudos que demonstrem as terríveis consequências para a futura saúde mental do bebé do facto de se nascer sem se ser desejado. O que, quanto a mim, é uma pedra fundamental da questão.

Vivemos num mundo ainda muito ligado ao materialismo, ao que é palpável, ao que se vê - o que não se vê é muitas vezes relegado para segundo plano ou mesmo ignorado. Ter trissomia 21 ou sofrer de outra qualquer mal-formação cromossómica é uma razão legalmente aceite para um aborto no nosso país, mas sofrer de falta de amor e desejo dos pais não é. Tavez porque a esfera do sofrimento psíquico não seja visível a olho nú, e as sequelas da alma ainda não sejam encaradas pela comunidade, científica e não científica, com a mesma seriedade que as do corpo. Sabemos que a comunidade científica ligada ao tratamento e acompanhamento destes casos - os psi - há muito tempo que lidam com esta realidade, há muito tempo que a estudam e que lhe reivindicaram um estatuto cientificamente válido, mas a verdade é que essa mesma fatia da comunidade científica ainda não tem força nem poder social e interventivo para, num debate deste tipo, como o é o do aborto, conseguir que a perspectiva unificadora da mente e do corpo seja de facto reconhecida e influencie decisivamente a conceptualização ideológica que rege e determina o poder e a orientação política da sociedade.

Por outras palavras, ainda vivemos na idade média conceptual da dicotomia corpo-mente, em que o primeiro é reconhecidamente o reservatório de todo o sofrimento e mal estar associado à doença e à disfunção. As mal-formações ligadas ao corpo, ao soma, são socialmente reconhecidas como razões válidas para que uma criança não nasça, devido ao sofrimento futuro e à diminuição da qualidade de vida que comportam. Já as mal-formações causadas por estados emocionais e factores afectivos são completamente ignoradas. Não se desejar um filho não é um argumento reconhecido para abortar, é antes encarado como um sinal inequívoco de prevaricação materna, num juízo de valor completamente moralista, como se, pelo facto de se ter relações sexuais, fosse automaticamente obrigatório estar preparada para a maternidade.

Quando a maternidade for uma opção tomada em consciência, talvez tenhamos um mundo melhor. Quando o amor e o respeito pela vida humana forem valores mais altos, talvez o mundo realmente avance. E agora estou a ver uns sorrisinhos irónicos na cara dos que dizem defender a vida opondo-se ao aborto... Sim, é a vida humana que eu defendo! Não, não acho que um conjunto de células se possa chamar de vida humana. E que vida vamos oferecer a esse conjunto de células quando se tornar numa pessoa? É claro que não podemos prever o futuro, mas o facto de não se ser desejado é um factor de risco demasiado relevante. Que, quando conjugado com outros, como a falta de disponibilidade económica, ausência de projectos para o futuro, imaturidade emocional dos pais, isto para dar apenas alguns exemplos, pode ter um resultado explosivo.

E depois acho que os Pró-Vida andam um bocado confundidos das ideias. Porque, ou bem que defendem a vida, e então deveriam defendê-la sempre, ou bem que a não defendem. A vida é um valor demasiado precioso para só se defender às vezes. Será que o filho de uma violação tem menos direito à vida do que outro? Ou um bebé com deficiência cromossómica ou com qualquer tipo de mal-formação? Se é a vida que defendem, e entendendo que a vida começa na concepção, então tenham a coragem de defendê-la em todas as circunstâncias. Sejam coerentes com as vossas ideias.

Mas ainda que eu me identificasse com estes argumentos, o que seria muito difícil, mas tentando fazer esse exercício mental, não entendo como é que se pode ser contra a despenalização. Porque, mesmo que não concordasse com o aborto e o considerasse um acto contra a vida, acho que não seria capaz de fechar os olhos à realidade de milhares de abortos clandestinos, praticados em péssimas condições, que muitas vezes têm como infeliz desfecho a morte de tantas mulheres. O que me confrange mais nas pessoas que são contra a despenalização é a sua hipocrisia e a forma como conseguem ignorar esta realidade. Porque o aborto é uma realidade que mata milhares de mulheres. Mesmo que não concordemos com ele, não o conseguimos impedir. Penalizá-lo é apenas condenar as mulheres a praticá-lo em condições não humanas. Como é que se pode defender a vida de um embrião e fechar os olhos a tantas mortes de vidas de milhares de mulheres?