
Li este livro e fiquei fascinada. De tal maneira que tenho de o partilhar convosco. Não vou encerrar o tema anterior, penso que há espaço para irmos falando de tudo.
Michel Odent traça-nos o percurso histórico de uma técnica cirúrgica que, graças à sua evolução, se tornou numa das formas mais usuais de nascer, no nosso século. É claro que está a falar da cesariana. Segundo ele, estamos neste momento na era das cesarianas, e das cesarianas programadas. Esta mudança revolucionária na forma do nascimento foi possível graças à segurança que hoje em dia a técnica oferece. De facto, somos confrontados com imensos estudos levados a cabo nos últimos anos, que comparam resultados entre os nascimentos por cesariana e por via vaginal, e os resultados são inconclusivos. O que quer dizer que, hoje em dia, e com as técnicas sofisticadas que existem, é impossível garantir que o parto por via vaginal ofereça menos riscos que o parto por cesariana.
Como é que este cenário se tornou possível? Para o autor não há dúvidas nenhumas que estes acontecimentos reflectem o desconhecimento e a ignorância dos técnicos de saúde em relação às verdadeiras necessidades de uma mulher em trabalho de parto. E é o desconhecimento e o não reconhecimento dessas necessidades que aumentam os factores de risco no parto por via vaginal. Esses riscos estão relacionados com o uso de fórceps ou ventosa, consequências para o períneo da prática da episiotomia, e dificuldades na dilatação ou mesmo incapacidade para fazer a diltação, com decorrente hipótese de sofrimento fetal.
Todas as mulheres, como fêmeas da família dos mamíferos, têm a capacidade de dar à luz por si mesmas, e se não houver interferências desnecessárias. Todas as fêmeas dos mamíferos o fazem. O que nos distingue em termos cerebrais, dos outros mamíferos, é a existência do neocortex, aquela parte do cérebro que nos permite pensar, e que sofreu um desenvolvimento extraordinário ao longo da evolução da espécie humana.
Durante o trabalho de parto, a parte mais primitiva do cérebro, composta pelo hipotálamo e pela glândula pituitária, segrega uma série de hormonas necessárias ao processo. Em todas as espécies de mamíferos é assim. A principal hormona envolvida no trabalho de parto é a ocitocina, a hormona do amor, segundo o autor. Esta hormona tem um papel activo na contracção do músculo uterino e no desencadeamento do trabalho de parto, bem como no reflexo de expulsão do fecto, um fenómeno normalmente observável no decorrer do trabalho de parto quando este não sofre interferências intrusivas desnecessárias.
O que se passa com a espécie humana é que a outra parte do cérebro, o neocórtex, aquela parte que, precisamente, nos distingue nos outros mamíferos e nos permite pensar e reflectir de forma única, acaba por interferir neste processo que, de outra forma, ocorreria naturalmente. O que se passa nas práticas dos nossos hospitais de há uns anos a esta parte é precisamente a sobrestimulação do neocórtex. Aliás, esta sobrestimulação vai acontecendo al longo da gravidez de uma forma que se revela mais nefasta do que positiva. Como? Vejamos: a falta de privacidade e o sentir-se observada, a presença de luz forte, a presença de um aparelho de monitorização do batimento cardíaco e da progressão do trabalho de parto, ouvir alguém falar, até a simples presença de um homem!
As necessidades básicas e fisiológicas de uma mulher em trabalho de parto podem, assim, resumir-se a uma frase: "não estimular o neocórtex". Falar com alguém é uma das maneiras de estimular esta parte do cérebro, por isso a mulher em trabalho de parto não precisa de palavras. Precisa essencialmente de se sentir segura, protegida e sentir a companhia de alguém que assuma essa função de protecção (uma figura maternal). Precisa de privacidade e de respeito por essa necessidade fundamental. O sentir-se observada e julgada suscitam ansiedade e estimulam a produção de hormonas da família da adrenalina, que atrasa o trabalho de parto. Precisa de estar num ambiente calmo, tranquilo, com muito pouca estimulação visual e auditiva. Se estas necessidades forem reconhecidas e respeitadas, uma mulher tem capacidade fisiológica para dar à luz sem interferência.
Mas e perguntamos nós: então e o saber que o bebé está bem? Não é essencial? Durante o parto essa é uma das preocupações de todas as mães. No entanto, e segundo este autor, essa necessidade de saber que o bebé está bem já faz parte do clima ansiogénico que se gera à volta do parto e do nascimento. Estamos ansiosas porque o próprio acompanhamento durante a gravidez é um constante bombardear de informação que gera ansiedade. Fazemos baterias de testes umas atrás das outras para saber se está tudo bem. Fazemos exames cada vez mais sofisticados para espreitar o bebé no útero e assegurarmo-nos de que tudo está bem. Isto, ao contrário do que seria de esperar, não nos retira a ansiedade, mas alimenta-a.
Durante muitos séculos, em muitas culturas humanas, os rituais relacionados com o nascimento interferiram de uma forma intrusiva na intimidade da mãe e do bebé recém-nascido, no sentido de separar o bebé da mãe nos momentos após o nascimento. Apesar de já existirem muitos estudos e evidências científicas da importância do contacto precoce entre a mãe e o bebé nestes momentos, é ainda prática corrente na maioria dos hospitais esta separação, invocando para tal toda a espécie de explicações e justificações médico-científicas. Michel Odent relaciona estas práticas com o facto de, para as sociedades de então, ser importante criar indivíduos mais agressivos para assegurar a continuidade da espécie (isto em termos evolutivos). Esta terá sido a realidade de séculos e séculos de história da humanidade, desde os seus primórdios.
A questão que se levanta é: será que isto faz sentido na atualidade? Afinal que sociedade queremos criar? Queremos continuar a ter sociedades guerreiras? Os valores que as sociedades actuais querem incutir nos seus indivíduos são completamente inovadores em relação aos valores do passado: hoje em dia há uma preocupação generalizada com o afecto, com a tolerância, com a paz, com o civismo, com a partilha, com a solidariedade, com a cooperação, com práticas anti-discriminatórias, isto só para dar alguns exemplos. O que as sociedades têm que entender é, acima de tudo, que, mantendo os rituais de nascimento existentes, dificilmente estes valores vingarão.
O aumento da taxa de cesarianas e de cesarianas programadas também traz consequências muito importantes a nível social. Especialmente no segundo caso, em que a mulher não entra em trabalho de parto. Quando o trabalho de parto é espontâneo, dá-se a libertação do cocktail hormonal indispensável para que este decorra naturalmente. Ao contrário, quando a cesariana é programada, a produção hormonal fica comprometida. O que se passa é que os processos de nascimento actuais interferem cada vez mais com esta produção hormonal que se desencadeia durante o trabalho de parto, e isto traz consequências a nível da vinculação e futura relação mãe-bebé, bem como do sucesso da amamentação. É altura de parar e perguntar: que seres humanos queremos criar? É altura de pensar em termos de futuro, a longo-prazo, capacidade que a nossa espécie não domina de forma nenhuma.
Podia estar para aqui a escrever sem parar sobre o livro, pois levanta tantas questões novas e encaradas de uma perspectiva ambiciosa e inovadora, que torna inesgotável qualquer comentário. Recomendo vivamente a sua leitura. E, depois de o ler, não mais olho para os meus partos com os mesmos olhos com que olhava antes. Compreendo agora porque é que, quando o David nasceu, fechava os olhos de forma persistente (e a enfermeira sempre a dizer-me que não se tinha um filho de olhos fechados!). Compreendo porque é que me incomodava que falassem comigo. Compreendo porque foram as mãos do meu marido a acariciarem-me a testa e os cabelos tão importantes. Comprrendo porque é que, apesar de terem sido os dias mais felizes da minha vida, não foram nem de perto nem de longe como eu queria que tivessem sido. E quero compreender mais!